De madrugada o telefone tocou e era
alguém procurando Ivete. Depois disso não consegui mais dormir
direito, rolei na cama, tomei três copos d’água. Quando finalmente
peguei no sono o despertador tocou, fui tentar caminhar em direção ao
banheiro ainda de olhos fechados e bati com a cabeça na porta. Não achei
meu chinelo, a resistência não funcionava, tomei banho frio. Roupa do varal não havia secado, vesti aquela calça jeans de quando eu tinha 15 anos, coloquei a blusa que estava em cima da cadeira. Essa era a
que eu tinha separado pra lavar na noite anterior porque tinha uma
mancha de molho na manga. Só notei quando já estava dentro do ônibus.
Cheguei no trabalho, tinha esquecido da
reunião do projeto. Entrei na sala no meio, recebi aqueles olhares de
reprovação, desabei numa cadeira. Joguei a bolsa pro lado, peguei o
celular, bateria acabando. Tinha esquecido o carregador. Tentei me
concentrar, em quinze minutos estava dormindo, quase caí pro lado. Fui
acordado pela Soraya perguntando se eu queria acrescentar alguma coisa.
Vaca. Bocejei, tentei manter os olhos abertos, não conseguia. Fiquei
nessa pelas próximas 3 horas, enquanto falavam sobre um relatório que eu
não conhecia, usando uns termos técnicos que eu não entendia. Pela
janela eu via os aviões decolando no aeroporto. Dormi de novo. Me
acordaram de novo.
Almocei sozinha porque meus amigos
estavam viajando. No restaurante tinha fila e não achavam mesa pra um.
Estava com fome. Pedi ao ponto, me trouxeram mal passado, pedi pra
trocar me trouxeram queimado. Deixei pra lá. No caminho de volta pensei
em tomar um sorvete e pedi uma casquinha de baunilha mas só tinha mista
ou chocolate. Não gosto de sorvete de chocolate.
De tarde fui revisar um texto com um
gerente. Ele me mandou, eu fiz uma versão, ele reclamou, mandei de novo,
ele reclamou de novo. Fiz uma nova versão, ele disse que ainda
precisava melhorar, reescrevi todo, ele disse que não tinha gostado.
Mexi de novo, ele disse que ia reler. Duas horas depois me mandou um
email dizendo que não precisava do texto. Nessa hora a internet caiu.
Me chamaram pra outra reunião e já era
bem tarde. Sentei na sala e me perguntaram se eu podia fazer a ata. Eu
disse que não, ia precisar sair cedo, tinha um vôo. Me disseram pra
fazer a ata mesmo assim e eu acabei não conseguindo dizer não. Tinha
dito que ia sair cedo mas mesmo assim, quando eu saí cedo, fizeram de
novo o olhar de reprovação. Peguei a malinha, desci, fui procurar um táxi,
vi que não tinha sacado dinheiro. Voltei pra ir ao banco.
No aeroporto me mandaram despachar a mala
mesmo ela sendo pequena, me deram um aviso falso de cancelamento, o vôo
atrasou mais de meia hora. Tinha fila no quiosque de pão de queijo, eu
tinha esquecido de levar um livro, me ligaram do trabalho pra perguntar
sobre um folheto.
Entrei no avião. Comprei janela mas tinha
um cara sentado na minha poltrona, tive que pedir pra ele levantar, ele
não quis, tive que discutir, ele foi embora xingando. Aeromoça derrubou
coca-cola na minha calça e serviu um mix de castanhas que só tinha
passas. Nunca gostei muito de passas. Senti aquela dor no ouvido quando o
avião pousou. Minha mala era a última na esteira e tinha umas marcas
estranhas do lado de fora.
O taxista disse que conhecia o teu endereço
mas na verdade não conhecia. Ninguém dessa cidade sabe chegar ai na tua casa. Confundiu os bairros, pegou duas ruas pelas
quais eu nunca tinha passado, parou num posto de gasolina pra pedir
orientação. Orientaram errado. Demos mais duas voltas, falamos com
policiais, perguntamos pro cara do gás. Chegamos na rua certa pelo lado
errado e ele ainda me cobrou sessenta reais.
Desci na sua porta, tirei a mala do
bagageiro, arrumei o cabelo com a mão e toquei seu interfone. Tentei
dobrar a manga pra não aparecer a parte que tinha manchado com molho. Tu desceu de pijama verde, abriu a porta, e se curvou pra me beijar. Me deu um
beijo e me perguntou se estava tudo bem, como meu dia estava sendo. E aí
eu olhei para aquele seu sorriso e sem a menor necessidade de mentir
consegui dizer que até ali estava tudo indo perfeitamente bem.